Quando um dos maiores símbolos ligados à feminilidade é ameaçado – a mama, no caso –, entram em jogo, consciente ou inconscientemente, os instintos mais ancestrais das mulheres em continuarem se
“sentindo completas”: seu corpo, a sensualidade, a amamentação, a atração. Por mais que a Medicina tenha avançado consideravelmente em relação a prevenção e tratamentos de câncer de mama, passar
por uma descoberta e intervenção nesse sentido continua não sendo psicologicamente fácil, ainda mais quando o caso evolui para uma mastectomia, em que é necessária a retirada total da mama.
Dados recentes do Instituto Nacional do Câncer (Inca), o qual apoia o Ministério da Saúde na articulação de ações para o controle e prevenção de câncer em geral no Brasil, apontam entre 2020 e 2022 uma estimativa de 625 mil novos casos (por ano), tendo em primeiro lugar a incidência de câncer de pele não melanoma (177 mil casos) e, em segundo, cânceres de mama e próstata (66 mil ocorrência cada um). No que diz respeito ao câncer de mama, as maiores incidências estão nas regiões Sul, Sudeste, Norte e Nordeste do país.
De acordo com a Dra. Vanessa Saliba Donatelli, mastologista do núcleo oncológico da Rede de Hospitais São Camilo (SP), do qual faz parte o Instituto Brasileiro de Controle do Câncer (IBCC), entre os casos de mulheres com câncer de mama, 44% são submetidas à mastectomia, a maior parte na faixa etária entre 50 e 60 anos.
É fato que políticas públicas em relação à saúde da mulher, como uma oferta adequada de médicos, hospitais e equipamentos de exames para a prevenção e tratamento do câncer de mama e outras
doenças, acabam agravando a situação, ainda mais em áreas periféricas, além de fatores cada vez mais cotidianos, como mulheres que sustentam a casa, a família e trabalham em tempo integral, não tendo
um intervalo ou condições financeiras para arcar com um acompanhamento minimamente apropriado.
Porém, fazendo o recorte para uma parcela de mulheres com tratamento médico ao alcance, as chances de uma mastectomia podem diminuir. “Quando pensamos em possibilidades de tratamentos ao câncer de mama e o diagnóstico sendo feito precocemente, teoricamente existe uma redução no número
de mastectomias, pois se conseguirmos a detecção num momento em que o tratamento conservador mostra que é possível ter a mesma eficácia, do ponto de vista oncológico, em relação à retirada de mama, obviamente a paciente optará por mantê-la”, reforça a mastologista líder do Centro de Referência em Tumores da Mama do Hospital A. C. Camargo, Dra. Fabiana Makdissi, que, inclusive, orientou uma marca tradicional de lingerie a montar o protótipo do primeiro modelo de sua linha para mastectomizadas.
QUANDO A SAÚDE ENCONTRA APOIO NA MODA
Em paralelo ao tratamento oncológico, as pacientes com câncer de mama e mastectomizadas também precisam, em grande parte, de uma ajuda emocional, com acompanhamento psicológico e outros paliativos na manutenção da autoestima até que se possa fazer a reconstrução mamária, lembra a Dra. Vanessa Saliba, do IBCC. E os sutiãs têm um forte papel nesse ponto. “Uma das coisas mais bonitas que temos hoje em dia é a possibilidade de opções que as mulheres possuem em relação a fazer o que elas quiserem. Existem pacientes que não se importam com a ausência da mama, e outras que já pediram para tirar as duas próteses porque se incomodavam, optando por não usar sutiã”, relata Dra. Fabiana Makdissi, do A. C. Camargo. Mas, para as que estão acostumadas e se sentem melhor com o sutiã, a mastologista destaca que atualmente há uma gama maior de opções específicas para mastectomizadas,
em modelos feitos por marcas comerciais de grande escala, pois, antes, e ainda hoje, para uma grande parte das mulheres que sofre essa intervenção cirúrgica, as alternativas ficavam em usar o sutiã tradicional com algum enchimento, como bola de meia ou um saquinho de alpiste, ou prótese externa de silicone, mas que não se moldavam adequadamente.
“Nos sutiãs que são produzidos industrialmente, e temos uma quantidade interessante no mercado e maior acesso a eles, comumente as pacientes pedem mais atenção na lateral, para que seja mais alta; um tecido que dê maior sustentação para colocar uma prótese externa de silicone; e a grande questão das mulheres é o colo, a região mais difícil de ficar adequada do ponto de vista estético, pois as pessoas percebem que existe uma alteração ali. Então, em geral, as pacientes optam por modelos de sutiãs que cubram mais o colo, que tenham uma rendinha que faça a cobertura do colo; caso contrário, elas usarão blusas que cubram essa parte”, destaca.
“A mulher já está vivendo um momento muito delicado, de altos e baixos, e ter um produto que lhe traga conforto, seja bonito e funcional, ajuda muito. Nossas estilistas estão sempre antenadas às solicitações
das nossas clientes e no que podemos facilitar em produtos, por isso o feedback tem sido inspirador. É muito bom saber que, por meio do nosso produto, conseguimos ajudar na autoestima dela”, revela
Tamiris Bazzanella Kuhnen, diretora-executiva da 2Rios Lingerie. Ela conta que o primeiro sutiã “mastec” da marca foi produzido em 2018, e atualmente se trabalha com um modelo com espaço interno para a colocação de prótese, testado por mulheres com essa necessidade, e a demanda está espalhada em toda a América Latina.
“Desde o início da pesquisa para lançamento desse produto, a prioridade foi entender qual é a necessidade das usuárias, as dificuldades que encontravam na compra e no uso do sutiã. Depois da pesquisa de campo com as mulheres que estavam vivendo esse momento, iniciamos a modelagem. No quesito materiais, já é comum para nossa marca usar o que há de melhor em conforto e qualidade, então
o processo foi bem tranquilo. Na modelagem, priorizamos a abertura frontal, a concavidade para o compartimento da prótese e um formato que auxilia na colocação dela”, revela Tamiris. No mesmo período, em 2018, quem também lançou um sutiã para mulheres mastectomizadas foi a Marisa, uma das
maiores redes de varejo de moda nacional, com um impacto importante na popularização do acesso ao item. Desenvolvido em parceria com a Sociedade Brasileira de Mastologia, o chamado Sutiã do Recomeço
chegou carregado de simbolismos às mulheres e à causa do câncer de mama, como explica Christianne Toledo, diretora de marketing da Marisa.
“Esse produto carrega grande importância desde seu lançamento em uma ação do Outubro Rosa, mês da conscientizaçãoda prevenção do câncer de mama, e quese tornou muito expressivo para nós nosanos seguintes, não só na data marcadapara relembrar do autoexame e prevenção,mas também durante todo o ano.”
De lá para cá, a linha foi expandida e contacom 15 modelos disponíveis no e-commerceda varejista, ganhando versõesem maiôs e tops. Segundo Christianne,a Marisa também evoluiu no seu posicionamentosobre o assunto e passou a nãosó falar sobre a causa, mas a participarativamente do debate sobre conscientizaçãoe prevenção, e dessa forma nasceua campanha #BemJuntas, com a ideia decolocar a mulher como comandante daprópria trajetória de vida e ter na marca umapoio para todos os momentos.“A mulher sempre esteve no centro detodas as decisões da companhia e, pormeio dessa campanha, debruçamo-nosem fazer com que elas se percebessemainda mais protagonistas para se sentirembem confiantes, bem donas de si. Duranteo Dia Rosa, realizado no dia 23 de outubrode 2021, doamos ao Instituto Protea (organizaçãosem fins lucrativos que custeiaparte do tratamento de câncer de mamade mulheres de baixa renda) 500 unidadesdos produtos, que possuem os atributosnecessários de que essa mulher precisa.E claro que estamos nos preparando parauma campanha tão inspiradora e efetivaquanto a do ano passado. Para nós, esseé um assunto muito importante, que queremosexpandir e trabalhar cada vez mais,ano após ano”, diz.Os modelos de sutiãs, tops e maiô para mastectomizadas desenvolvidos pela Marisa têm laterais mais largas, base reforçada,tecido externo de leve compressão e forrointerno de algodão, bem como aberturapara a inserção da prótese. As alças sãoreguláveis, para ajustar a sustentação, odecote mais elevado para cobrir parte docolo e, em alguns modelos, acabamentoem renda.“Sabemos que essas mulheres passarammuito tempo procurando por uma peçaque entregasse a beleza de uma lingeriecom o conforto de que elas precisam, epara nós é um privilégio quando recebemosrelatos de recuperação da autoestimade nossas clientes. Esse projeto trazbenefícios não só a elas, mas também éum alarme para a prevenção. Com certeza,está em nossa pauta ampliar cada vezmais a grade de produtos para mulheresmastectomizadas, pois é uma causa quedefendemos: o cerne do nosso negócioé fortalecer a autoestima da mulher, alémde fortalecer projetos voltados à conscientizaçãoe à prevenção do câncer demama”, reforça Christianne.
Há um ano, em 1.º de outubro de 2021, quem também entrou para este time foi a Hope, com o lançamento do sutiã Esperança. O modelo está disponível em duascores (preto e bege ballet) e na numeraçãoque vai do 42 ao 48, e a marca pretende,para os próximos anos, ampliar a oferta demodelos e cores em sutiãs para mastectomizadas.A sócia e diretora de estilo e marketing doGrupo Hope, Sandra Chayo, conta que aidealização do sutiã Esperança começouem janeiro do ano passado, mirando numproduto funcional, pensado nos mínimosdetalhes, para que acompanhasse as mulheresapós a cirurgia de mamas.“Em fevereiro de 2021, começamosas buscas por mulheres de diferentesregiões do país que já haviam tido câncerde mama para conhecermos suas histórias,dores, lutas e superações. Ouvimos! E, naquele momento, entendemos o tamanhoda responsabilidade que tínhamospela frente: traduzir em um produto todasas necessidades que cada uma delas nosapresentou. De março a junho, começamoso desenvolvimento do produto – forammais de 15 projetos-piloto –, mudamostecidos, rendas e modelagens, atéchegarmos a um sutiã que atendesse acada necessidade para lançarmos, finalmente,a peça no mês de outubro. Tantoo produto quanto a campanha foram pensadosem conjunto com mulheres que jápassaram pelo câncer de mama para, assim,proporcionarmos juntas a esperançae desmistificar o câncer”, relata Sandra.
O sutiã Esperança é feito em micro fibra power, para dar maior segurança nas lateraise nas costas, e recoberto com renda,com um design exclusivo no busto. Oforro é de microfibra biodegradável, dandoum toque de suavidade em contato coma pele; as alças são reforçadas e reguláveis;as laterais e costas mais altas; e ofechamento é feito por colchetes. Na parteinterna, há uma estrutura para embutir aspróteses, com duas opções de abertura.Outra marca que acaba de lançar um modelode sutiã para mastectomizadas é a Liebe, com o modelo Liberty, uma lingeriedesenvolvida com tecnologias exclusivaspara mulheres mastectomizadas. Commodelagem única, o Liberty apresentaaberturas adaptadas para uso de prótesesmamárias removíveis, costuras internasembutidas que não incomodam no pós–operatório e laterais largas duplas em microfibrapara maior conforto. Além disso,não possuem arco nem bojo, e seu forroé feito em microfibra biodegradável, o quegarante toque macio sob a pele para segurançae comodidade.
UMA AJUDANDO A OUTRA
Em Juruaia (MG), onde está um dos principaispolos produtores de lingerie do país,quem manda são as mulheres. Foram elasque reergueram a economia local e colocarama cidade no mapa brasileiro como“capital da lingerie”, e estando cercadada força feminina, não havia como nãopensar nas necessidades de um mercadotão necessário como o de sutiãs paramastectomizadas.Uma das expoentes desse movimento naregião é a OuseUse, que em 2007 começouo projeto Amigas do Peito, que fazdoações de sutiãs especiais para mulherescarentes que tiveram que passar pelamastectomia.Rosana Marques, diretora da OuseUse,explica que, devido à alta procura por essetipo de sutiã na loja, a equipe de desenvolvimentoda marca projetou o modelo, quepossui modelagem especial e aberturalateral para a entrada da prótese externa.“Desde então, o produto segue em linhae é vendido para o Brasil inteiro”, comenta Rosana. “Em mais de uma década, a OuseUse já doou esses sutiãs a mulheresde todo o país e também do exterior, ajudandonão somente pela estética, mas,principalmente, no resgate da autoestima”,ressalta.Esse é também o mote da Lindelucy, maisuma das marcas de destaque em Juruaiaque resolveram investir na criação de ummodelo para mastectomizadas, atendendo às necessidades de suas clientes.
Lucia Iorio, diretora da Lindelucy, conta que clientes que passaram pelo procedimento e gostavam da modelagem da marca começaram a procurar por opções, e, com a contratação de uma modelista que entendia das necessidades dessas mulheres, desenvolveram um modelo com enchimento removível dos dois lados, dando o formato dos seios, e fizeram modelagens com renda, mantendo a elegância da peça.
Há 12 anos no mercado, a marca BellaLi abraça a causa das mulheres mastectomizadas de outra forma: a de confecção para doação. Com a produção em Juruaia, Elizandra Rinaldi Bergonsini Beraldo, proprietária da BellaLi, conta que, a partir de conversas com mulheres que já estavam em tratamento contra o câncer de mama e tinham um modelo ideal de sutiã em mente, pediu que a estilista da marca desenvolvesse o piloto para, então, os sutiãs serem confeccionados e enviados a endereços certos, hospitais no interior
de São Paulo: em Botucatu, por meio de um amigo parceiro da marca que já participava de um projeto, e São João da Boa Vista, onde a marca fez uma parceria com a faculdade local (Unifae) por meio do Conselho de Mulheres Empreendedoras, para doar as peças a pacientes do SUS e da Santa Casa de Misericórdia. Para o próximo ano, revela Elizandra, há previsão de o projeto chegar a mais uma cidade do interior paulista.
O CÂNCER DE MAMA NO ALVO DA MODA
Quem vê um símbolo redondo com contornos azul-claro e azul-escuro, que lembra um olho grego, quase automaticamente já se lembra da icônica campanha “O Câncer de Mama no Alvo da Moda”. Criada e administrada pela CFDA Foundation (The Council of Fashion Designers of America), a campanha mundial completa 28 anos, e o Brasil, um dos países que aderiram desde o início, segue firme nessa trajetória sob a tutela do IBCC São Camilo Oncologia, licenciado exclusivo da marca; sim, o símbolo possui patente, direitos autorais e uma causa humanitária por trás (alô copiadores, não façam isso!).
Coordenada por Gustavo Fonseca, responsável pelo licenciamento de marcas da rede de hospitais São Camilo (SP), a campanha para o Outubro Rosa 2022 conta com parceiros de longa data, como a Hering, na confecção das camisetas e outros itens de vestuário com o símbolo; a Cacau Show, com trufas de chocolate; a Lindoya Verão, com garrafinhas de água mineral; a Boni Natural, com desodorantes; e a Chamex, com resmas de papel sulfite. Todos os itens são licenciados e com a identidade visual da
campanha, tendo a renda revertida integralmente ao São Camilo Oncologia, na unidade da Mooca, onde funciona o IBCC, que é pioneira e referência no combate ao câncer de mama, atendendo pacientes do SUS.
“Esses recursos auxiliaram no tratamento de aproximadamente 28 mil pacientes oncológicos nossos do SUS por ano”, conta Gustavo.
Ele destaca que um dos pilares da campanha “O Câncer de Mama no Alvo da Moda” é disseminar a conscientização a respeito do assunto, ressaltando a importância do autoexame mensal e de exames periódicos que detectam tumores em fase inicial.
“Procuramos desmistificar a questão do câncer de mama, já que ainda há muitos preconceitos em torno da doença, muito medo de descobrir um tumor. E, na verdade, a realidade é que, quanto mais cedo o tumor é detectado, maiores são as chances de sucesso no tratamento.”
Além da compra dos produtos da campanha “O Câncer de Mama no Alvo da Moda”, também é possível contribuir com doações. Todas as informações podem ser acessadas em www.ocancerdemamanoalvodamoda.com.br